Gostas de mim, não gostas?
Conto de Daniel Teixeira
Gostas de mim, não gostas? foi o que ela me perguntou, assim de chofre, naquela tarde na Alameda quando eu tentava fazer com que uma côdea de pão fosse ter certinha a um pobre pato preto que não era suficientemente lesto e deixava sempre que os outros chegassem primeiro ao naco deixando-lhe o bico vazio a chapinhar na água um pouco escura do lago.
Eu conhecia aquele pato e estava a estudá-lo havia quase um mês tentando conseguir saber as razões do seu, para mim, estranho comportamento e não interrompi a minha análise e a reflexão que se lhe acoplava como uma luva por causa daquilo que que a moça me perguntou.
Se gosto dela (?) agora não dava para responder e para além do mais a minha resposta teria as suas consequentes extensões dialogadas e voltei, sem ter saído, da observação ao pato preto. Era estranho, de facto.
Não quero ser cínico, nem sequer quero pensar hoje que naquele dia estava a pensar que o pobre do animal, mesmo não comendo nada, ficava convencido que comia, tal o frenético «mastigar» das suas abas ossudas e a surpresa que eu lhe notei no olhar quando finalmente acabou por «abocanhar» o bom bocado que eu quase lhe encostei ao bico.
Ele terá sentido o sólido do pão ao mesmo tempo que eu senti o deslizante da pergunta que me foi feita pela Clarinha.
Ora a surpresa do pato foi diferente, certamente, os patos não se surpreendem como os humanos, parece-me claro, mas deve ter sido tão intensa quanto a minha ao ter digerido por inteiro a pergunta que a Clara (Clarinha) me fez.
Não deveria ser uma pergunta assim tão estranha se nos conhecêssemos há mais tempo mas era apenas a segunda vez que a levava ali ao lago e depois nos sentávamos num banco esverdeado e suspirávamos respirando o ar puro que o arvoredo nos proporcionava.
Era bom e eu de facto gostava de estar ali com a Clarinha porque ela era extremamente pouco conversadora distinguindo-se nisso das outras colegas dela que eu tinha levado noutros dias, colegas essas que pareciam ter uma necessidade absoluta de espalhar vocabulário sobre as ervas, como se estivessem alegremente semeando os pensamentos que manifestamente preferiam estar ausentes das suas cabecinhas.
Claro que antes disso, antes do lago e da Alameda tinham havido várias saídas com a Clarinha, o que atenuava um pouco, apenas um pouco o meu potencial de estranheza mas por dentro de mim veio, só para mim, a habitual reacção do perguntado inopinadamente: que raio de pergunta!!.
Numa delas, das minhas saídas com a Clarinha, havia uma dessas saídas que eu penso ter sido a mais marcante para a sua pergunta. Terá sido, na minha opinião, o dia eu que eu, descuidado e entusiasmado com o filme que corria no ecrã do cinema local deixei escorregar a mão direita pela sua coxa esquerda e acabei por me encontrar, embaraçado, com a sua mão entrelaçada nos meus dedos apertando-me ela com força toda a superfície sobre-palmar (quer dizer, a parte posterior dos dedos, para simplificar).
O filme até nem era nada de jeito mas a dada altura o realizador achou por bem inserir um lago com um único e isolado pato, branco, por sinal, que vagueava em círculos quase concêntricos. Ora este pormenor levou-me a tentar perceber se o sacana do realizador, ou alguém a seu mando, não teria atado uma corda a uma coxa do pato, obrigando-o assim a circular, circular e só circular e isto durante pelo menos um minuto, e foi nessa altura que joguei uma aflitiva mão à pouco aflita coxa da Clarinha.
Depois disso o pato e o lago do cinema foram-se embora mas a mão da Clarinha ganhou renovada força própria e tratou de escolher para a minha mão um trajecto que não me envergonhando de todo me impede de o referir aqui em detalhe.
Na verdade a escrita, se se entender que «isto» é um escrito, requer-se sóbria, metódica, alinhada, convergente e o que a minha mão fez (não o provocando, esclareço) ultrapassa os limites que a essa mesma escrita todo o escritor (mesmo bera, como eu) lhe deve impor.
Por isso eu digo que terá sido esse mero evento (meia hora : depois vieram as luzes e o fim da sessão), provavelmente com significações diferentes para ela e para mim, terá sido esse evento, repito, que terá estado na origem da inopinada pergunta da Clarinha naquele dia na Alameda.
Aqui devo confessar que tenho pouca apetência e jeito para fazer entoações diferenciadas pelo que me saiu em resposta à sua pergunta um «Claro que sim, Clarinha, claro que gosto de ti.» o que não sei porquê parece não a ter satisfeito. Debandou, ao que me pareceu bastante irritada, fazendo roçar ruidosamente a saia nos silvados que lhe tentavam tolher o caminho.
Vejo-a de quando em vez e ela vira-me simplesmente a cara: sinto vontade de lhe dizer, se para isso tivesse oportunidade, que é injusto que ela me trate assim depois de tudo aquilo que fizemos juntos, tal como estar na Alameda sentados respirando o ar puro da natureza e até tenho pensado, embora desista logo da ideia, que um dia destes lhe falo em irmos ao cinema.
Conto de Daniel Teixeira
Gostas de mim, não gostas? foi o que ela me perguntou, assim de chofre, naquela tarde na Alameda quando eu tentava fazer com que uma côdea de pão fosse ter certinha a um pobre pato preto que não era suficientemente lesto e deixava sempre que os outros chegassem primeiro ao naco deixando-lhe o bico vazio a chapinhar na água um pouco escura do lago.
Eu conhecia aquele pato e estava a estudá-lo havia quase um mês tentando conseguir saber as razões do seu, para mim, estranho comportamento e não interrompi a minha análise e a reflexão que se lhe acoplava como uma luva por causa daquilo que que a moça me perguntou.
Se gosto dela (?) agora não dava para responder e para além do mais a minha resposta teria as suas consequentes extensões dialogadas e voltei, sem ter saído, da observação ao pato preto. Era estranho, de facto.
Não quero ser cínico, nem sequer quero pensar hoje que naquele dia estava a pensar que o pobre do animal, mesmo não comendo nada, ficava convencido que comia, tal o frenético «mastigar» das suas abas ossudas e a surpresa que eu lhe notei no olhar quando finalmente acabou por «abocanhar» o bom bocado que eu quase lhe encostei ao bico.
Ele terá sentido o sólido do pão ao mesmo tempo que eu senti o deslizante da pergunta que me foi feita pela Clarinha.
Ora a surpresa do pato foi diferente, certamente, os patos não se surpreendem como os humanos, parece-me claro, mas deve ter sido tão intensa quanto a minha ao ter digerido por inteiro a pergunta que a Clara (Clarinha) me fez.
Não deveria ser uma pergunta assim tão estranha se nos conhecêssemos há mais tempo mas era apenas a segunda vez que a levava ali ao lago e depois nos sentávamos num banco esverdeado e suspirávamos respirando o ar puro que o arvoredo nos proporcionava.
Era bom e eu de facto gostava de estar ali com a Clarinha porque ela era extremamente pouco conversadora distinguindo-se nisso das outras colegas dela que eu tinha levado noutros dias, colegas essas que pareciam ter uma necessidade absoluta de espalhar vocabulário sobre as ervas, como se estivessem alegremente semeando os pensamentos que manifestamente preferiam estar ausentes das suas cabecinhas.
Claro que antes disso, antes do lago e da Alameda tinham havido várias saídas com a Clarinha, o que atenuava um pouco, apenas um pouco o meu potencial de estranheza mas por dentro de mim veio, só para mim, a habitual reacção do perguntado inopinadamente: que raio de pergunta!!.
Numa delas, das minhas saídas com a Clarinha, havia uma dessas saídas que eu penso ter sido a mais marcante para a sua pergunta. Terá sido, na minha opinião, o dia eu que eu, descuidado e entusiasmado com o filme que corria no ecrã do cinema local deixei escorregar a mão direita pela sua coxa esquerda e acabei por me encontrar, embaraçado, com a sua mão entrelaçada nos meus dedos apertando-me ela com força toda a superfície sobre-palmar (quer dizer, a parte posterior dos dedos, para simplificar).
O filme até nem era nada de jeito mas a dada altura o realizador achou por bem inserir um lago com um único e isolado pato, branco, por sinal, que vagueava em círculos quase concêntricos. Ora este pormenor levou-me a tentar perceber se o sacana do realizador, ou alguém a seu mando, não teria atado uma corda a uma coxa do pato, obrigando-o assim a circular, circular e só circular e isto durante pelo menos um minuto, e foi nessa altura que joguei uma aflitiva mão à pouco aflita coxa da Clarinha.
Depois disso o pato e o lago do cinema foram-se embora mas a mão da Clarinha ganhou renovada força própria e tratou de escolher para a minha mão um trajecto que não me envergonhando de todo me impede de o referir aqui em detalhe.
Na verdade a escrita, se se entender que «isto» é um escrito, requer-se sóbria, metódica, alinhada, convergente e o que a minha mão fez (não o provocando, esclareço) ultrapassa os limites que a essa mesma escrita todo o escritor (mesmo bera, como eu) lhe deve impor.
Por isso eu digo que terá sido esse mero evento (meia hora : depois vieram as luzes e o fim da sessão), provavelmente com significações diferentes para ela e para mim, terá sido esse evento, repito, que terá estado na origem da inopinada pergunta da Clarinha naquele dia na Alameda.
Aqui devo confessar que tenho pouca apetência e jeito para fazer entoações diferenciadas pelo que me saiu em resposta à sua pergunta um «Claro que sim, Clarinha, claro que gosto de ti.» o que não sei porquê parece não a ter satisfeito. Debandou, ao que me pareceu bastante irritada, fazendo roçar ruidosamente a saia nos silvados que lhe tentavam tolher o caminho.
Vejo-a de quando em vez e ela vira-me simplesmente a cara: sinto vontade de lhe dizer, se para isso tivesse oportunidade, que é injusto que ela me trate assim depois de tudo aquilo que fizemos juntos, tal como estar na Alameda sentados respirando o ar puro da natureza e até tenho pensado, embora desista logo da ideia, que um dia destes lhe falo em irmos ao cinema.